Dimas
O que te tira o sono?
O privilégio.
O que é o privilégio?
Ter algo a perder.
A minha personagem bíblica preferida – para além de Jesus, claro – é um homem cujo nome não vem citado, mas que, de alguma forma, se descobriu ou se convencionou que se chamava Dimas. Tem uma passagem muitíssimo curta no Evangelho, não se sabe de onde vinha, o que fazia, o que pensava. Não se conhece nada da sua personalidade. Absolutamente nada. Pela circunstância em que aparece – crucificado com Jesus – não devia ser boa rês. A crucificação não era uma penalização, ou um castigo: era um aviso. Para que alguém fosse crucificado não bastava ter cometido crimes comuns como roubar ou insultar ou até matar. Esses eram condenados a outro tipo de penas, mais civilizadas. Os crucificados eram sempre alguém que, de alguma maneira, punham em causa a ordem estabelecida cometendo crimes tão hediondos que matar apenas era pouco castigo. Tinham de servir de exemplo aos outros, as consequências tinham de ser de tal forma penosas e públicas que tirassem a vontade a quem ousasse pensar fazer o mesmo. De Dimas sabemos apenas que ele estava lá, no mesmo dia e na mesma hora, ao mesmo tempo, condenado a morrer ao lado de Jesus. E sabemos também que não seria um inconsciente. E que conhecia Jesus. E que teve a capacidade de, naquele momento, ver a sua vida passar diante dos olhos, compará-la com a de Jesus, e concluir que o injustiçado ali não era ele próprio, mas Jesus. Teve a capacidade, naquela hora de agonia – se era agonia para Jesus era-o de certeza para Dimas – de reconhecer que a seu lado tinha alguém que nada tinha feito de mal e que estaria ali porque tinha feito o bem. E teve o discernimento, por entre a sua dor, de reconhecer em Jesus aquilo que muitos dos que O acompanharam durante tanto tempo não reconheceram: estava diante do próprio Deus.
Dimas nada tinha a perder. Dimas, naquele exato momento, nada tinha. Dimas estava, naquela cruz, tão despojado quanto o próprio Deus. Jesus não era um deus grego, dos que pairava acima dos homens, imune à dor e ao sofrimento, entretido a jogar aos dados com as vidas dos comuns mortais. Jesus era Deus, sim, mas um Deus que se quis fazer homem. E quem temos ali, desnudado, de pé, diante do sinédrio, quem temos ali, desnudado, de pé, diante de Pilatos, quem temos ali, desnudado, crucificado e alvo da chacota de todos, é um homem. Sereno, tranquilo, calmo, confiante. Porque algumas horas antes, num jardim ali perto, já tinha dado tudo por entre lágrimas de sangue, já tinha entregue tudo, já se tinha entregue todo, e quando entregamos tudo nada temos a perder. E quando já nada podemos perder, só podemos ganhar. Jesus e Dimas encontram-se, no mesmo lugar, à mesma hora, em igual condição de despojamento. Um, porque deu tudo. Outro, porque perdeu tudo. Ou quase tudo.
Na verdade, nós, os que procuram algo mais que respiro em cima de respiro, temos sempre algo a perder, sobretudo se acreditarmos que estamos diante do próprio Deus. E, mais uma vez Dimas percebeu-o quando, quase no último dos seus suspiros, pediu a Jesus aquilo que é mais significativo para todos nós: lembra-te de mim. Que não se perca a memória de mim. Que eu não tenha passado pela vida em vão. Que eu não tenha não existido. O pedido de Dimas e a resposta de Jesus constituem aquela que é a minha grande esperança. Tudo em Dimas é, naquele momento, entrega total, absoluta, da única coisa que possui: a sua vida. Despojado das suas coisas, despojado do seu futuro, carregando apenas o peso do seu passado, confia que o Amor do Pai não o despoje do melhor da sua vida, da essência da sua vida: lembra-te de mim. Quando permito que o medo me roube, que a dúvida me assalte, lembro-me da resposta de Jesus: hoje mesmo estarás comigo no paraíso. Assim. Sem cobranças, sem ai agora?sem chamadas de atenção, sem eu bem te avisei, onde tudo é dado, onde tudo é recuperado, onde tudo é vida, onde tudo é futuro. Hoje mesmo estarás comigo no paraíso. Este diálogo de amor, este pedido e pronta resposta constituem, como referi, a grande esperança da minha vida.
Nós, que lutamos tanto, todos os dias, para tentar ganhar a vida, nem sempre estamos atentos ao que, verdadeiramente, deixaremos como legado. Que memórias ficarão de nós? Como nos recordarão? O que sentirão aqueles que amamos e que nos amam ao nos recordarem nas suas vidas?
Estas coisas, esta responsabilidade, este medo, sim, é o que me tira o sono. É um privilégio, ser recordado. É um privilégio maior, tremendamente maior, uma responsabilidade quase esmagadora, quando, numa conversa informal, recordam algo que dissemos ou fizemos anos antes como tendo sido significativo para as suas vidas. Estar à altura, ser digno dessas memórias, é uma batalha minha, de todos os dias. Que perco a esmagadora maioria das vezes.


É verdade.
É muito importante que, por onde passamos, a nossa vida, deixemos sempre um "rasto"..
Obrigado.